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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Justo Gonzalez - Entrevista


Justo Gonzalez ensinou teologia histórica em diversas instituições, entre elas o Seminário Evangélico em Porto Rico, a Escola de Teologia Candler na Universidade Emory, e o Seminário Teológico Columbia. Durante os últimos 30 anos, ele desenvolveu programas de formação teológica para hispanos.

Seus diversos livros sobre a história da igreja foram traduzidos para diversas línguas e são amplamente usados em todo o mundo. Entre eles, temos no Brasil a série Uma História Ilustrada do Cristianismo (10 volumes) e Cristianismo na América Latina que será lançado no segundo semestre de 2009, também por Edições Vida Nova.

(Entrevista concedida para o site Teologia Brasileira, durante o 1º Congresso Hagnos e Servo de Cristo 2009).


Teologia Brasileira:
O que o motivou a estudar “história”, especificamente, “história do cristianismo”?


Justo Gonzalez:
Quando eu era jovem, a matéria que eu mais odiava na escola era história. Eram muitos nomes, muitas datas, muita memória e pouca vida. Mas depois, quando eu fiquei um pouquinho mais velho e comecei a estudar Teologia, vi livros de bons teólogos e os melhores sempre falavam de seus antecessores, de gente que eu não conhecia. Havia um livro muito famoso, A teologia dogmática de Karl Barth, que era um livro muito grande. Quando comecei a ler esse livro, cada página tinha 10, 12 nomes de pessoas que eu não sabia quem eram. Pessoas do século segundo, do século quinze, do século quarto. Naquela época, eu também estudava Filosofia, e logo notei que era impossível estudar Filosofia sem estudar a História da Filosofia. Os cursos de Introdução à Filosofia sempre começam com a Filosofia Grega. Da mesma forma, não é possível estudar Teologia sem conhecer a História da Teologia. Foi isso que me levou a estudar a história do cristianismo. Hoje me interesso mais pela história porque percebo que a História fala da vida dos povos, da vida de homens e mulheres, de quando essas pessoas viviam, as obras que esculpiam. Isso tudo era tão importante para eles como nossa vida é para nós hoje. Por isso não tem nenhuma razão para a História ser algo chato, muito pelo contrário. Você lê um romance histórico, um romance sobre o rei Carlos V e fica muito impressionado porque ali está a história da vida dele.

Teologia Brasileira:
Existe uma história do cristianismo separada da História?

Justo Gonzalez: Existe, mas não deveria existir. Lamentavelmente, a História do cristianismo é escrita com exclusão da História geral da humanidade. No entanto, acho que isso não é bom dos pontos de vista teológico, metodológico e também pedagógico. Não é bom teologicamente porque nosso Senhor é o Senhor da História, toda a História está em suas mãos. É evidente que na história há também pecado, mas Jesus é o Senhor da História e nós aguardamos o fim da História. Logo, não é possível falar da História da humanidade sem falar da História de um Deus que age dentro dessa história. Portanto, não deveria existir duas Histórias. Isso que fazemos nas escolas de separar a História secular não deveria existir. E ao mesmo tempo não é correto, pois a História da Igreja, a vida da igreja tem lugar sempre dentro do contexto da vida geral da humanidade. Você não pode falar da igreja no Brasil, sem falar do Brasil. Você não pode falar das mudanças que têm ocorrido na igreja brasileira nos últimos cinquenta anos, sem falar das mudanças que têm ocorrido na história do Brasil como país inteiro nos mesmos cinquenta anos.

Teologia Brasileira:
Em termos de pensadores da história cristã, quais as influências mais marcantes em sua história pessoal?

Justo Gonzalez: Ah! São muitas, muitas, muitas. Originalmente, quando eu era mais jovem, as influências mais marcantes foram principalmente Martinho Lutero e Agostinho. Depois, Irineu passou a ser mais importante para mim. Ele foi teólogo e bispo na França do final do século segundo. Outra influência foi Karl Barth. Karl Barth foi um teólogo suíço que protestou veementemente contra o nazismo e que criou uma nova maneira de se fazer Teologia no princípio do século XX, por sinal algo que gerou muita discussão. Além desses que citei, tem também meu pai, minha mãe, minha esposa; todos são teólogos que têm me influenciado muito.

Teologia Brasileira:
Na sua opinião, o testemunho da igreja cristã tem apresentado uma postura coerente em relação à unidade da igreja?

Justo Gonzalez: Coerente sim, mas boa não. É coerente, mas ruim. O testemunho da igreja tem perdido muito por dois motivos, que são ambos negativos. O primeiro é uma divisão constante, segundo a qual cada igreja pensa que fica só no mundo de Deus, que só ela é igreja. Isto é verdade em igrejas grandes e também em igreja muito pequenas; o problema é o mesmo. Outro problema, outro extremo é quando a unidade da igreja se torna algo administrativo, muitas vezes ditatorial, não voluntário. Os dois são problemas, a unidade da igreja não é apenas unidade: um chefe, um papa, um bispo, um grande pastor. Essa postura fez muito mal para o testemunho cristão.

Teologia Brasileira:
Para o sr., quais seriam hoje as formas veladas de intolerância religiosa?

Justo Gonzalez: Muitas não são tão veladas. Naturalmente há intolerância religiosa em todas as religiões e temos de ter cuidado quando falamos em tolerância religiosa entre os cristãos. Há também muita intolerância religiosa entre os muçulmanos, entre os hindus. Agora mesmo um grupo de cristãos tem saído de seus territórios porque os vizinhos estavam matando. O governo diz: “Nós podemos protegê-los, vocês devem regressar às suas casas mas devem ficar em dois para não ter problema”. Isso acontece na Índia agora no século XXI, e principalmente nos países muçulmanos. Agora não acontece com os cristãos. Há muitas e muitas formas de intolerância religiosa. Eu acho que, em nosso contexto particular na America Latina, possivelmente a forma mais velada é a intolerância de alguns chefes, de alguns pastores de igrejas muito grandes que querem que todo mundo pense exatamente o que eles pensam ponto por ponto, de A a Z. Fazem tudo isso para manter o povo, levando-o a fazer o que eles dizem. Isso é intolerância religiosa também. Intolerância religiosa não é um problema só da igreja romana, é um problema de todos os cristãos que acreditam ser possuidores da verdade. O cristão não possui a verdade, a verdade possui o cristão.

Teologia Brasileira: Como o sr. avalia o crescimento do cristianismo na América Latina?

Justo Gonzalez: Há coisas muito boas, e isso eu não preciso falar porque todo mundo já conhece. Mas há também alguns perigos e problemas: a espuma cresce muito, mas não tem muita sustância; e boa parte do crescimento do protestantismo na América Latina é como uma espuma. Não é a primeira vez que isso é um problema para a igreja. Isso também aconteceu no século quarto e teve consequências nefastas mais tarde. As pessoas não sabem no que creem. Por esse motivo, nós precisamos agora tomar o tempo necessário para trabalhar o discipulado, o ensino, as doutrinas, a teologia, a vida cristã — sobre a prática da vida cristã, sobre a experiência entre a vida cristã e a vida secular, e sobre a diferença entre o sucesso cristão e o sucesso como o mundo entende. Precisamos falar mais disso, de modo que as pessoas que venham para as nossas igrejas verdadeiramente tenham sustância nas suas crenças. Essa [a falta de sustância] é uma das razões por que as pessoas creem em alguém que vem a uma das nossas igrejas com uma doutrina nova ou um texto bíblico achando que isso explica tudo. Esse é um problema do crescimento espumoso.

Teologia Brasileira:
É dito que a América Latina é um 'celeiro de missões'. Como o sr. vê essa afirmação?

Justo Gonzalez: Possivelmente a coisa mais importante que tem acontecido na igreja cristã em todo o mundo, nos últimos cinquenta, setenta anos, é que os centros do cristianismo têm mudado. Isso não é a primeira vez. No Novo testamento, temos primeiro Jerusalém, depois Antioquia, depois no Mediterrâneo, depois na Europa Ocidental; depois no século XVI com os espanhóis e os portugueses, e no século XIX o centro veio a ser o Atlântico Norte. O eixo do cristianismo estava na linha que vai de Londres até Nova Iorque, e era de lá que saíam os missionários. O que tem acontecido nos últimos anos é que o centro tem mudado. Agora existem mais cristãos no Sul do que no Norte. Isso não se dá somente na América Latina, mas também na África e na Ásia. A Igreja Presbiteriana da Coréia é maior do que sua igreja mãe nos Estados Unidos. Hoje a ilha de Porto Rico envia mais missionários para Nova Iorque do que a igreja de Nova Iorque manda para o restante do mundo. A mudança é enorme. A América Latina, que até a segunda metade do século passado era receptora das missões, tem sido enviadora de missionários para as missões. Isso é muito interessante porque agora as pessoas que pregam o evangelho em Uganda podem ser ingleses, mas podem ser também brasileiros, argentinos, coreanos. As pessoas que pregam aqui no Brasil são os chineses, os coreanos... E as pessoas que pregam na Argentina são uruguaias. Isso é a troca. Troca que é muito maior do que nós vemos no mapa mundial da igreja cristã.

Teologia Brasileira:
Em sua obra Cristianismo para América Latina, o sr. argumenta que há uma relação mutuamente formadora entre o cristianismo e o contexto latino-americano. Poderia nos falar um pouco sobre essa sua tese?

Justo Gonzalez: Primeiramente, eu não leio o que escrevo [risos]. Não há dúvida de que o cristianismo tem feito um grande impacto na América Latina. O catolicismo romano implantado pelos espanhóis e pelos portugueses está na base da formação religiosa e cultural do continente. Há também as influências indígenas, as influências africanas, mas o ingrediente principal é o que vem da Ibéria, o cristianismo ibérico. Mas o cristianismo que vem à América Latina também se transformou na América Latina, de muitas maneiras. Não somente o cristianismo espanhol e português exerceu influência sobre os indígenas; a religião dos indígenas também influenciou o cristianismo que se desenvolveu. Eu falava hoje sobre a virgem de Guadalupe. Ela é, originalmente, uma deusa asteca. Há também os africanos, que são elementos africanos latino-americanos e não africanos da África — como os escravos brasileiros que desenvolveram sua religião da África no Brasil. Isso não se dá somente na igreja católica, mas também na igreja protestante. Eu tenho amigos antropólogos e sociólogos que fazem comparações entre a maneira que a religião e o culto funcionam dentro das comunidades originalmente escravas e as maneiras que funcionam nas novas igrejas pentecostais. Mesmo que não vejamos, em todo o mundo branco, há uma influência africana que fica ainda lá. Agora, especialmente porque a América Latina é um centro de missões, esse cristianismo da América Latina também vai para o resto do mundo. A América Latina aceita o resto do mundo. Hoje, nos Estados Unidos, mais da metade dos católicos romanos são latinos; nas igrejas pentecostais são entre 20 a 30 por cento; nas igrejas mais antigas, as chamadas históricas, o crescimento se dá entre os latinos e os coreanos. O cristianismo da América Latina tem ido para todo o mundo.

Teologia Brasileira:
Como o sr. vê a produção teológica na América Latina?

Justo Gonzalez: Bem há seus pontos claros e seus problemas. Primeiramente, é preciso pensar na troca que tem acontecido nos últimos cinquenta anos; e não se deve pensar que a situação presente é a situação de sempre. Eu vejo coisas muito positivas. Deixe-me contar uma história. Quando eu estava no seminário, o primeiro livro de História da Igreja que eu estudava era um livro grande de mil e quinhentas páginas, com letra muito pequena, em inglês, porque não existia em espanhol. Era um livro que mostrava que depois da Reforma o que interessava era a Europa do Norte, os alemães, os ingleses e, depois, os americanos. Eu disse ao meu professor de História que ele deveria fazer um livro de História com o nosso ponto de vista. E ele disse: “Meu filho, isso jamais acontecerá, porque o mercado latino-americano é muito pequeno, e isso não é possível”. Hoje esse livro que vocês publicam é o principal em todos os seminários dos Estados Unidos. É um livro que não era possível há cinquenta anos. Essa é uma mudança enorme. Se nós virmos o que existe e pensarmos ser um retrato do presente, podemos falar do que falta, mas, se olharmos o que vem acontecendo nos últimos trinta, quarenta anos, temos muitas razões para ter esperança. Para mim, o que é mais importante é que, teologicamente, a igreja latino-americana começa a ser ela mesma. E sua teologia tem o mesmo respeito da teologia que vem do estrangeiro. A teologia do estrangeiro é boa, mas não é nossa. Ela é boa no estrangeiro. Mas é preciso que o povo latino-americano reflita sobre a sua fé e produza uma teologia latino-americana. Isso já acontece, mas, se você vir os hinos musicados, por exemplo, muitos são traduzidos do alemão, e poucos são produções espanholas ou portuguesas. Acho que temos muito ainda para percorrer, mas já temos percorrido o caminho. Por isso, não devemos ser pessimistas, nem tampouco podemos ficar contentes, porque ainda há uma grande parte do nosso povo que vê algo, que vem diretamente dos Estados Unidos ou de um programa de televisão norte-americano, como algo vindo diretamente do céu.

Teologia Brasileira:
De que forma o cristianismo contribuiu e pode vir a contribuir para a história da América Latina?

Justo Gonzalez: O cristianismo contribuiu de várias formas. Como falamos antes, o cristianismo é um dos elementos principais da cultura latino-americana. E não somente no aspecto religioso, mas também no idioma que os cristãos trouxeram. O cristianismo também contribuiu com a liberdade religiosa — especialmente o protestantismo — porque o movimento protestante foi um movimento em prol da liberdade. Muitos dos latino-americanos se não eram protestantes eram pelo menos simpatizantes dos protestantes. E depois, quando veio o liberalismo, muitos dos governantes liberais utilizaram a igreja para promover a educação e a liberdade de pensamento. Isso aconteceu em muitos lugares. Mas há o lado negativo: existe uma forma de cristianismo que é um dualismo platonista, que defende que só o espiritual é que é bom. Esse tipo de cristianismo tira as pessoas da realidade social e não permite que elas façam a contribuição que poderiam fazer. Eu acho que o cristianismo pode contribuir muito, o grande problema é que as igrejas pensam que sua contribuição é governar, é mandar, é ter poder. Hoje há deputados, prefeitos, alguns países têm presidentes evangélicos. Se a igreja pensa em mandar ela acaba fazendo aquilo que o catolicismo romano fez. Mas, se a igreja entende que ela tem implicações para a vida total do povo, ela apoia as iniciativas do país que sejam boas.


Entrevista concedida para o site Teologia Brasileira, durante o 1º Congresso Hagnos e Servo de Cristo 2009

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